PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
FRANCESA
O reino da aventura chegou ao fim. Ainda que estejamos na sétima galáxia e providos de estrutura e
mecânica, teremos que nos voltar para o que somos: umas crianças tremendo diante
da morte, uns seres vivos que não sabem muito bem como, e nem porque vivem e,
para onde irão. Sabedores/Cientes de que sobre a Terra, o tempo das Cortes e
dos Pizarro se extinguiu, chegou ao seu fim: mas a mesma mecânica que nos
aprisionava, como armadilha, se fecha novamente.
Pois,
como sempre, descobrimos que as nossas mais sombrias adversidades, são as
melhores ocasiões e que o passo perigoso é só um passo que conduz a uma luz
mais intensa. Encontramo-nos, então, encurralados (albergados) diante do último
espaço que nos resta por explorar, a última aventura: nós mesmos.
Os sinais
surgem, são simples e evidentes. O fenômeno mais importante desta década, não
foi a viagem à Lua, mas sim as "viagens" às drogas e a grande
movimentação/migração dos hippies e a efervecência estudantil por todo o mundo.
E aonde iriam? De certo, não na efervecência das praias, nas estradas
congestionada e muito menos na aglomeração da cidades. Necessitam dirigir-se à
outra parte.
Porém há
todo tipo de "outras partes". As drogas são incertas e estão nelas o
perigo, e, sobretudo, dependem de um meio exterior- uma experiência de poder
abster-se voluntariamente e não importa onde, no meio do mercado ou mesmo
sozinho, caso contrário não será uma experiência e sim uma anomalia, uma
escravidão. Os estudos psicanalíticos se limitam a momentos ainda
não tão profundos, mal iluminados e, sobretudo, carecendo da alavanca da
consciência que permitem ir, aonde o ser é sujeito de si, seu dono e não
como vítima enferma. As religiões são mais luminosas, porém dependem igualmente
de um deus ou de um dogma, e, sobretudo, restringe-se a um tipo de experiência;
porque se pode também, além de tudo, ser prisioneiro de outros mundos, da mesma
forma que deste. E finalmente, o valor de uma experiência se mede por seu
poder de transformação da vida, caso contrário falaremos somente de um
sonho ou alucinação.
Neste
momento, Sri Aurobindo nos leva a efetuarmos um duplo descobrimento de
que temos necessidade urgente, se quisermos, não só dar uma saída a
esse sufocante caos, como também transformar nosso mundo. Porque seguindo passo
a passo com sua prodigiosa exploração- sua técnica da exploração dos
espaços interiores, diríamos, nos conduzem ao maior descobrimento de todos os
tempos, ao umbral do Grande Segredo, que deve mudar a face desse mundo, o saber
que a consciência é um poder. Restritos como estamos pela
"inevitável" condição científica em que nascemos, parecendo que o
homem não tivera outra esperança que, o do proliferar cada vez maior de suas
máquinas, que enxergarão melhor que ele, ouvirão melhor que ele, calcularão
melhor que ele. Trata-se de saber que podemos mais que as máquinas, e que esta
enorme Mecânica que nos sustenta , pode ser derrubada, com a mesma
rapidez com que nasceu, só que somente quando nos dispusermos a tomar a frente
do verdadeiro poder e descermos ao nosso próprio coração, como exploradores
metódicos, rigorosos e lúcidos. Talvez então descubramos que neste esplêndido
Século XX, a Psicologia/psicanálise, ainda se encontra na Idade da Pedra, e que
com toda a nossa Ciência, não havíamos alcançado a verdadeira Ciência de Viver,
nem o domínio do mundo e nem de nós mesmos, e que diante de nós se abrem
horizontes de perfeição, de harmonia e de beleza, frente aos quais, nossos
soberbos descobrimentos, são torpes tentativas de aprendiz.
SATPREM
Pondicherry, 27 de janeiro de 1970
INTRODUÇÃO
"Posso chegar a ser o
que vejo em mim mesmo.
Posso fazer tudo quanto
me sugere o pensamento:
posso chegar
a ser tudo quanto o
pensamento me revela.
Esta deveria ser a
fé inquebrantável do homem em
si mesmo,
porque Deus mora nele".1
Certa vez um marajá muito perverso que não tolerava
que ninguém fosse superior a ele. Um dia chamou todos os pandits (sábios) do
reino, como era costume fazê-lo em circunstâncias graves, e lhes dirigiu esta pergunta:
Qual de nós dois é maior, Deus ou eu?". Os pandits estremeceram. Como eram
sábios por profissão, pediram ao marajá tempo para refletir antes de responder-lhe;
não queriam, nem perder seu posto nem pôr em perigo sua cabeça. Tratava-se de
pandits muito piedosos que tão pouco queriam ofender a Deus, e como lamentavam
amargamente, o mais velho deles os tranquilizou dizendo-lhes: "Deixem a
mim o caso, amanhã falarei com o príncipe". No dia seguinte toda a corte
encontrava-se reunida em solene reunião
quando o velho pandit chegou humildemente, com as mãos juntas e a fronte
untada de cinza branca; logo, inclinando-se, pronunciou estas palavras:
"Oh, Senhor, tu és, sem dúvida, o maior". O príncipe retorceu três
vezes seu longo bigode e seu peito encheu-se de arrogância. "Tu, Senhor
-continuou o pandit ancião-, és o maior, porque tu podes expulsar-nos de teu
reino, e Deus não pode fazê-lo: tudo quanto existe é Seu reino, e fora Dele
nada é possível".
Esta historia da Índia, foi contada na Bengala, a
terra onde nasceu Sri Aurobindo, não é distante àquele que dizia que tudo é Ele:
os deuses, os diabos, os homens, a terra, e não somente os céus; não é estranha
ao homem cuja experiência conduz a uma reabilitação divina da Matéria. Desde já
faz meio século não há cessado a psicologia de reintegrar os demônios no homem,
e bem poderia ocorrer, como André Malraux
pensava, que a tarefa do próximo meio século fosse a de "reintegrar
os deuses", ou melhor, como queria Sri Aurobindo, a de reintegrar o
Espírito no homem e na matéria e a de criar vida "a vida divina sobre a
terra": "O alto céu é grande e maravilloso, mas maior ainda e
maravilhoso é o céu que se encontra em vós. Este é o Éden que espera o
trabalhador divino".
Existem muitos modos de pôr mãos à Obra; em realidade,
cada um de nós têm uma abertura particular, para um, será uma peça bem
trabalhada, um dever cumprido; para outro, uma formosa idéia, um sistema
filosófico harmonioso, e para outros será uma página de música, um rio, um
amanhecer no mar, e todas são formas de respirar no infinito. Mas estes são
breves instantes e nós queríamos algo permanente. São minutos sujeitos a não poucas
condições inapressáveis, e nós queríamos algo inalienável, que não dependesse
de condições nem de circunstâncias, uma janela, a mais, em nós, que não
voltasse a fechar-se nunca.
E, como essas condições dificilmente conseguem-se na
terra, dizemos "Deus", "espiritualidade", "Cristo” e
"Buda" e toda a linhagem dos fundadores das grandes religiões, e
todas são formas de alcancá-lo permanentemente. Mas pode ser que nós não sejamos
homens religiosos nem espiritualistas, senão homens simplemente, que
acreditamos na terra; homens que desconfiamos das grandes palavras, que nos
encontramos cansados dos dogmas e que também estamos cansados de bem pensar;
homens, enfim, que só queremos nosso pequeno rio que corre pelo Infinito. Havia
na Índia um santo que durante muitos anos, antes de haver alcançado a paz,
fazia aos que cruzavam-lhe o caminho, esta pergunta: "Hás visto Deus?... Hás visto Deus?" e se afastava
descontente porque sempre lhe respondiam com meras histórias. Ele queria ver. E
não carecia de razão, se tomamos em
conta toda a mentira que os homens cobrem com a palavra Deus, como o fazem
também com tantas outras palavras. Quando nós O tivermos visto, então falaremos
Dele, ou talvez então guardaremos silêncio. Não, nós não queremos dar-nos por
satisfeitos com meras palavras; nós queremos empreender a viagem com tudo o que
temos desde o ponto onde nos encontramos, com nossos tamancos e o barro que a
eles se adere, e também com nosso raio de sol no rastro de nossos bons dias, porque essa é, simplesmente, nossa
fé. E logo, bem sabemos que tal como é, a terra não é nada boa e quiséramos que
mudasse; mas já perdemos a confiança nas panacéias universais, nos movimentos,
nos partidos, nas teorias. Empreendemos a marcha no quilômetro zero, quer
dizer, em nós mesmos, o que, certamente, não é grande coisa, mas é tudo que
temos, e este pedaço de mundo é ele que trataremos de mudar antes de salvar o
resto. Mas talvez não sejamos tão inocentes, pois quem sabe se mudar a si não
seja o meio mais eficaz de mudar o outro?
Que pôde Sri Aurobindo fazer por nós neste baixo nível?
Há um Sri Aurobindo filósofo, um Sri Aurobindo poeta
-poeta ele foi essencialmente-, um visionário da evolução, mas não todo mundo é
filósofo, nem poeta, nem, menos ainda, vidente. E, depara-se um meio de crer em
nossas possibilidades -não humanas somente, senão sobrehumanas e divinas-, um
meio não só de crer nelas, senão de nós mesmos descobrí-las, passo a passo, um
meio de ver e de chegar a ser
amplos, amplos como a terra que amamos, e todas as terras e todos os mares que
levamos dentro, estaríamos acaso satisfeitos? Porque também há um Sri Aurobindo
explorador -que era yogue-; mas não disse ele mesmo, por ventura, que "o
yoga é a arte do descobrimento consciente de si mesmo"? 3
Esta exploração da consciência é a que nós quiséramos
empreender com ele, e se procedemos com calma, com paciência, com sinceridade,
afrontando valorosamente as dificuldades do caminho -e bem sabe Deus se é
escabroso o caminho-, não há razão alguma para que a janela que nos encherá de
sol para sempre não se abra um dia. Para dizer a verdade, não é uma só, senão
numerosas as janelas que abrem-se uma após a outra, sobre um espaço cada vez
mais vasto, sobre uma nova dimensão de nosso reino, e cada vez se produz uma mudança de consciência tão radical
como pode sê-lo, por exemplo, o passar do sonho à vigília. Propômo-nos a
reconstruir aqui as principais etapas destas mudanças de consciência, tal como
Sri Aurobindo teve experiência delas e como as descreveu a seus discípulos em seu
yoga integral, até o momento em
que elas nos conduzam ao umbral de uma nova experiência, desconhecida ainda e
que acaso tenha o poder de mudar a vida.
Porque Sri Aurobindo não é somente o explorador da
consciência, senão, ao mesmo tempo, o arquiteto de um mundo novo. Há que mudar
de consciência se o mundo circundante segue sendo o mesmo que é agora? Corremos
o risco de ser como aquele rei de Andersen que ia nu pelas ruas de sua capital.
Assim, depois de haver recorrido a última fronteira de mundos não desconhecidos
à antiga sabedoria, Sri Aurobindo descobriu outro mundo que não figurava em
nenhum mapa, e lhe deu o nome de Supramental;
esse mundo é o que quiz fazer descer à terra. E nos convida a colaborar
com ele na empresa e a participar de uma
bela história, se é que gostamos de histórias. Porque o Supramental, diz Sri
Aurobindo, almeja uma mudança decisiva na evolução da consciência terrestre -
de fato, é justamente a mudança
de consciência o que disporá de poder para transformar nosso mundo material- e
para transformá-lo de modo tão profundo e duradouro -esperamos que para bem-
como não o fez a Mente desde que pela primeira vez se manifestou na Matéria-.
Então veremos como o yoga integral desemboca em um yoga supramental ou um yoga da transformação terrestre, que nós
trataremos de esboçar aqui, somente para esboçar, porque a história se encontra
agora em transe de realização, é nova de todo ponto e difícil, e não sabemos
muito bem porém, onde nos conduzirá nem sabemos sequer se alcançará o que
propõe.
No
fundo, ela depende em parte de todos nós.
I
UM CONSUMADO OCIDENTAL
Como homem, Sri Aurobindo encontra-se próximo a nós, porque, depois de tudo,
quando tenhamos saudado respeitosamente a "sabedoria da Asia" e os raros
ascetas que parecem mofar-se de nossas leis, poderemos advertir que nossa curiosidade
foi comovida, mas não nossa vida, e que ainda nos fará falta uma verdade de
ordem prática capaz de sobrepor-se a nossos intensos invernos. Sri Aurobindo
conheceu muito bem nossos invernos: mais ainda, neles passou os anos de sua
formação, dos sete aos vinte anos. Viveu de um sótão a outro, a mercê de
hospedeiros mais ou menos benévolos, contentando-se com uma refeição por dia e
carecendo de abrigo para colocar sobre os ombros, mas carregado sempre de
livros: os simbolistas franceses, Mallarmé, Rimbaud, a quem lia em sua língua
original ainda antes de haver lido alguma tradução do Bhagavad Gita. Sri
Aurobindo é para nós o sujeito de uma síntese única.
Nasceu em Calcutá, em 15 de agosto de 1872, o ano das
Iluminações de Rimbaud; já
então, a física moderna havia nascido com Max Planck; Einstein é poucos anos
mais jovem que ele e Julio Verne sonda então o futuro. No entanto, a rainha
Vitória se prepara para coroar-se imperatriz da Índia, e não foi dada a
conquista da África, até então; nos encontramos na conjunção de dois mundos. A
história dá-nos às vezes a impressão de que os períodos de prova e de
destruição precedem ao advento de um mundo novo, mas acaso ele seja um erro
e, ainda melhor, porque de fato o germe
novo nasceu é por ele que as forças da subversão (ou do escombro) se exacerbam.
Como quer que seja, a Europa se encontra no apogeu de sua glória; a partida
parece jogar-se no Oeste. Assim, isto havia compreendido o doutor Krishnadhan
Ghose, pai de Sri Aurobindo, que, por haver estudado medicina na Inglaterra, se
converteu a tal ponto pela cultura inglesa. De modo algum queria que seus
filhos -tinha três, dos quais Sri Aurobindo era o menor- se contaminassem do
misticismo "retrógrado e embriagador" em que seu país parecia afundar-se.
Não queria sequer que seus filhos conhecessem nenhuma das tradições nem das
línguas da Índia. Sri Aurobindo foi, então, dotado não só de um nome inglês
-Akroyd-, senão de uma babá inglesa -Miss Pagett-, e logo, desde a idade de
cinco anos, enviado a Darjeling, a uma escola de monjas irlandesas, com os
filhos dos administradores britânicos. Dois anos mais tarde os três filhos do
doutor Ghose partiam para Inglaterra. Sri Aurobindo tinha sete anos. E até os vinte
não aprenderá o bengali, sua língua materna, não voltará a ver seu pai, falecido
pouco antes de seu regresso à Índia; a sua mãe se, ainda que enferma, apenas o
reconhecerá ao vê-lo. Encontramo-nos, então, na presença de uma criança que cresceu
fora de toda influência familiar, nacional ou tradicional, em presença, em
suma, de um gênio livre. Acaso a primeira lição que nos dá Sri Aurobindo seja
justamente uma lição de libertade.
Sri Aurobindo e seus dois irmãos foram entregues a
um pastor anglicano de Manchester, "com severas instruções de que não
conhecessem nenhum hindu, nem se expusessem a nenhuma influência indiana";
decididamente, este doutor Ghose era um homem singular. Ordenou assim mesmo ao
pastor Drewett que não desse nenhuma instrução religiosa a seus filhos, a fim
de que eles mesmos pudessem escolher, se quisessem, sua própia religião quando
tuvissem idade para ela. Logo, durante três anos, os abandonou a sua sorte.
Bem, poderia acreditar-se que o doutor Ghose fosse um homem sem coração, mas não
era asim; não só prodigava seus cuidados, senão seu dinheiro aos pobres das
aldeias bengalis, enquanto que seus filhos careciam em Londres do necessário
ainda para comer e para vestir-se, e morreu de tristeza quando se enteirou, por
engano, de que seu filho predileto, Aurobindo, havia naufragado. Mas queria que
seus filhos fossem homens de caráter.
Os primeiros anos em Manchester foram de alguma
importância para Sri Aurobindo, porque aprendeu o francês -o inglês será
naturalmente sua língua "materna"- e descobriu então em si mesmo uma
inclinação espontânea para nosso país; não dirá acaso, ao término de seus longos
anos na Inglaterra?: "Eu estava apegado ao pensamento e à literatura
ingleses e europeus, mas não a Inglaterra como país; eu não tinha vínculos
ali... Se existe uma terra na Europa a qual eu estivesse unido como a uma
segunda pátria, intelectualmente tanto como pelo coração, essa era uma terra
que eu não havia visto, onde não havia vivido, ao menos nesta vida, e essa terra
não era a Inglaterra, se não a França".2
Logo o poeta já havia despertado nele; já escutava "o murmúreo das coisas
invisíveis" de que fala um de seus mais antigos poemas, já a janela
interior havia se aberto, ainda que a religião o houvesse tocado muito
superficialmente a julgar pelo relato de sua conversão; de fato, a mãe do pastor Drewett havia proposto salvar
a alma dos três pequenos hereges, em todo caso a do menor deles, a quem levou
um dia consigo a uma reunião de pastores "não conformistas".
"Uma vez feitas as orações -conta Sri Aurobindo-, as pessoas se
dispersaram, a exceção dos devotos; era a hora das «conversões». Eu me
aborrecia ao extremo. Depois, um pastor se aproximou a mim e me fez algumas perguntas
[Sri Aurobindo devia ter então dez anos]. Não respondia nada. Então todos
exclamaram: «Está salvo! Está salvo!» e puseram-se a orar por mim e a dar
graças a Deus". Sri Aurobindo, o vidente, não havia de ser nunca um homem
religioso nem na Índia nem no Ocidente; muitas vezes procurou enfatizar que a
religião e a espiritualidade não são necessariamente sinônimos. "A verdadeira
teocracia -escreverá mais tarde- é o reino de Deus no homem, não o reino de um
papa, de uma Igreja ou de uma casta sacerdotal".
Tem doze anos quando começa
a etapa londrinense de sua vida; já conhece a fundo o latim e a língua francesa.
O diretor do St. Pauls School, onde ingressa Sri Aurobindo, se mostra tão surpreendido
do talento de seu aluno, que decide dar-lhe ele mesmo lições de grego. Ao cabo
de três anos, Sri Aurobindo podia tomar-se a liberdade de saltar à metade de seus
cursos e de entregar-se quase por inteiro à leitura, que é sua ocupação
favorita. Nós ignoramos o que escapou a este adolescente voraz –à parte do
cricket, que em verdade não lhe apaixonava mais que os Sunday-school-; mas Shelley e o Prometeu libertado, os poetas franceses, Homero, Aristófanes e
logo todo o pensamento europeu -porque muito cedo soube o suficiente de alemão
e de italiano para ler Dante e Goethe em sua língua original- povoam a solidão
da que nada nos disse ele mesmo. Tão pouco tratava de criar-se relações, tanto
que Mono Mohan, o segundo de seus irmãos, corria por Londres em união com seu
amigo Oscar Wilde e havia de distinguir-se na poesia inglesa. Em verdade, cada
um dos três irrmãos vivia sua própria vida. Sri Aurobindo, no entanto, não era
um jovem austéro e menos ainda um puritano (os pruritanos, dizia); simplemente,
ele se encontrava "em outra parte" e seu mundo estava cheio. Ainda em
suas brincadeiras mostrava certa gravidade que nunca lhe abandonou. "O
sentido do humor? É o sal da existência. Sem ele, há muito tempo o mundo estaria
completamente desequilibrado -já o está não pouco- e perdido". Porque há
um Sri Aurobindo humorista, e acaso seja este Sri Aurobindo mais importante que
o filósofo de quem falavam com gravidade as universidades do Ocidente; a
filosofia não era para Sri Aurobindo senão o meio de tentar compreender de
certa categoria de pessoas que nada entende sem explicações; a filosofia era
para ele um meio de expressão, como era também a poesia, ainda que, esta
última, um meio mais claro, verdadeiro; mas o humorismo era parte essencial de
seu ser; não se trata, por certo, do zumbido humorismo do homem engenhoso,
senão de uma maneira de gozo que não pode deixar de manifestar-se por-
onde quer que passa. Às vezes, como um relâmpago que nos deixa um tanto
deslumbrados, adivinha-se sob as
trágicas circunstâncias humanas e triste
ir, quase zombeteiro
riso, como as caretas que o drama
de uma criança brincando e repentinamente, porque sua
natureza o inclina ao riso, e porque, no fundo, nada nem ninguém no mundo pode tocar
esse interno reduto em que cada um de nós reina sempre. Acaso seja este, em
verdade, o sentido do humorismo aurobindiano, uma rejeição ao drama; mais
ainda, o sentimento de uma realeza inalienável.
Ignoramos se neste St. Pauls School apreciava-se seu humorismo, mas seguramente sua assombrosa cultura; uma
subvenção que lhe foi outorgada ia permitir-lhe ingressar em Cambridge –e já
era tempo, porque os subsídios de sua família haviam desaparecido quase de todo
ponto-, mas era pouco ainda para por fim ao frio e à fome, tanto mais quanto
que os irmãos maiores participavam também, em grau não pequeno, daquela ajuda.
O que ia fazer Sri Aurobindo neste berçário de “gentlemen” (homems gentis)? Tinha então dezoito anos e, sem
dúvida, obedecia os desejos de seu pai. Mas não por muito tempo. Desde seu
primeiro ano no Kings College acumula
todos os prêmios de poesia grega e latina, mas seu coração não se encontra ali.
Joana Darc, Mazzini, a revolução americana o perseguem: em suma, a liberação de
seu país, a independência da Índia, do qual será um dos primeiros artesãos.
Esta imprevista vocação política havia de ocupá-o por cerca de vinte anos, a ele
que não sabia bem o que era um Indiano e menos ainda um Hindu. Mas logo
preencherá esse vazio; tanto no que respeita o hinduísmo como enquanto concerne
ao ocidentalismo, se este se pode dizer assim, ele saberá tomar dupla mordida e
fazer a digestão; caso contrário não será verdadeiramente Sri Aurobindo senão
quando tenha assimilado a um e a outro e
descoberto o ponto em que ambos os mundos se encontram em algo que não é nem um
nem outro, nem sequer uma síntese, senão melhor, como disse a Mãe -continuadora da obra de Sri
Aurobindo- uma terceira posição, "outra coisa", da qual temos viva
necessidade, nós que não somos nem materialistas limitados nem espiritualistas
exclusivos.
Tornou-se então secretário da Indian Majlis, associação de estudantes
indianos de Cambridge; pronuncia discursos revolucionários, troca seu nome
britânico, se filia a uma sociedade secreta: "Lótus e Punhal", nada
menos! (mas o romanticismo podia conduzir também à forca). Em suma, se faz
suspeito e pronto figura na lista negra de Whitehall. Isto não lhe impede obter
uma licenciatura de Letras clássicas; logo, uma vez passado o exame, renuncia
ao grau, como se aquilo fosse já insuficiente. Apresenta-se também ao célebre
concurso do Indian Civil Service, chamado
a abrir-lhe as portas do governo da Índia ao lado dos administradores
britânicos, obtêm brilhantes resultados, mas não se cuida de submeter-se à prova
de equitação –sai para passear nesse dia em vez de cavalgar em Woolwich- acaba desqualificado. Nesta ocasião o decano
de Cambridge se exaspera e escreve: "Que perca o governo da Índia um homem
de tais qualidades simplesmente porque não montou um cavalo ou porque não
compareceu a uma reunião, me parece - confesso- um monumento de miopia oficial
que seria difícil de superar. Os dois últimos anos sua vida foram muito
difíceis e atribulados. As remessas de fundos de seu país cessaram quase por inteiro
e ele teve não só que prover a suas próprias necessidades, senão manter a seus
irmãos também... Em muitas ocasiões escrevi a seu pai em seu nome, mas sem
muito êxito. Só há pouco tempo consegui dele algum dinheiro para pagar aos
comerciantes, que do contrário, haveriam mandado seu filho ao cárcere... "7
A defesa do decano não deu nenhum fruto. A Colonial Office havia tomado a decisão: Sri Aurobindo era sujeito
de cuidado. E não estavam, certamente, equivocados.
Tinha vinte anos quando embarca rumo à Índia. Seu
pai acaba de morrer. Sri Aurobindo carece de fortuna e títulos. O que resta de
seus treze anos no Ocidente? Sentimo-nos tentados a fazer nossa a justa
definição de Edouard Herriot, porque se bem é verdade que, a cultura é tudo
quanto resta quando tudo foi perdido, certo é também que o que nos resta do
Ocidente, quando o deixamos, não são nem seus livros nem seus museus nem seus
espetáculos, senão uma necessidade de converter em fatos vivos tudo o que temos
sonhado. Esta é, sem dúvida, nossa virtude ocidental. Infelizmente possuímos
inteligencia demasiada para ter algo em verdade clarividente que realizar fora
de nós mesmos, enquanto que a Índia, pletórica por dentro, não é o bastante
exigente para igualar o que vê com o que vive. Esta lição não havia de ser
inútil.
II
A LEI ETERNA
"Nosso
proletariado se encontra mergulhado na ignorância e imerso na indigência!"
1 exclama Sri Aurobindo quando desembarca na Índia. Não são
problemas metafísicos que lhe saem ao passo, senão um problema de ação. Atuar,
no mundo estamos para atuar; falta saber qual ação empreender e, sobretudo,
qual é o método adequado à ação mais eficaz. Esta atitude prática será própria
de Sri Aurobindo desde seus primeiros passos na Índia até suas mais altas
realizações yóguicas. Recordamos uma viajem ao Himalaia (perdão pela digressão)
e haver passado ali dias de privilégio na companhia de um sábio, entre os
pinheiros e os oleândros, perante um horizonte de gelos resplandecentes, entre
o céu e o vale. Tudo isto está muito bem e nós dizíamos que era fácil ter
pensamentos divinos, acaso visões também, a essa altura do mundo; mas e abaixo?
Não estávamos equivocados do todo, ainda que -como aprenderemos mais tarde-,
bem se pode fazer, e fazer muito
pelo mundo, no silêncio e a imobilidade do corpo -uma ilusão tenaz nos faz
confundir a agitação com a ação-; no entanto, o que permaneceria de nossos
minutos divinos uma vez substituída nossa solidão e jogados à planície? Há
nisso uma miragem que os hinduizantes fariam bem em estudar, porque, depois de
tudo, se é a evasão do mundo o que nos tenta, um pedaço dos Alpes ou da
Camargue seriam suficientes, inclusive uma célula de muros cheios de cal; bem
se mofa dos Ganges ou dos Brahmaputras a "peregrinação às fontes". O
que iria dar a Índia a Sri Aurobindo? É ela por ventura, dona de algum segredo
que vaga penosamente para a ação na vida?
Se damos
crédito aos livros que falam de hinduísmo, se trataria de uma espécie de
paleontologia espiritual entrecortada de polissílabos sânscritos, como se o
hindu fosse um filósofo enigmático ao mesmo tempo que um idólatra impenitente.
Mas, se simplesmente contemplamos a Índia por dentro, sem a pretensão de
entrecortar nela parágrafos de hinduísmo (sempre falsos, porque corremos o
risco de ser como o viajante que, havendo recorrido Delhi em maio, descobriu
que a Índia era tórrida, e se houvesse ido ao leste e ao sul, em novembro, em
março e em todas direções, haveria se dado conta de que a Índia é fria e
ardente, úmida, desértica, mediterrânea e doce; que é um mundo tão indefinível
como seu "hinduísmo", que não existe, porque o hinduísmo não é uma
crença nem uma longitude espiritual, que não a estuda nem a conhece a fundo;
(tudo nela é possível), se a contemplamos por dentro, digo, descobriremos que a
Índia é o país de uma imensa liberdade espiritual. O sedicioso
"hinduísmo" é uma invenção ocidental; o hindu diz somente "a lei
eterna", sanatana dharma, que
ele sabe muito bem que não é uma exclusividade indiana, senão muçulmana também,
negra, cristã e ainda anabatista. O que ao ocidental parece a parte mais importante de uma
religião, quer dizer, a estrutura que a distingue
das demais religiões e que faz que alguém seja católico ou protestante,
e que pense como este ou como aquele ou que se incline por este ou aquele artigo
de fé, essa é a parte menos importante para o hindu, que instintivamente trata
de apagar as diferenças exteriores a efeito de encontrar a todos os demais no
ponto central em que tudo se comunica.
Esta amplitude,
é coisa muito diferente da "tolerância", que só é o inverso negativo
da intolerância; é a compreensão positiva de que cada homem tem uma necessidade
interior, que normalmente se chama Deus ou de muitas outras maneiras, e que
cada homem tem necessidade de amar o que compreende de Deus, a seu próprio nível e no grau particular de
seu desenvolvimento interior, e que a maneira de Paulo não é a de João. Que
todo o mundo possa amar um deus crucificado, por exemplo, parece antinatural ao
hindu médio, que se inclinará respeitosamente diante do Cristo (com respeito
tão espontâneo como que diante de sua própria imagem de Deus), mas que
considera que a face de Deus se encontra também no riso de Krishna, no terror de Kali, na doçura
de Saraswati e em mil mais que dançam, compassivas policromias de bigodes, e alegres,
e temerosas, iluminadas, -"um deus que não soubesse rir não poderia criar
este universo humorístico", dizia Sri Aurobindo 2-, e
que tudo é Sua face, tudo é Seu jogo, terrível e belo, barroco como nosso
mundo. Porque esse país - a Índia-, tão lotado de deuses, é ao mesmo tempo
também, o país de uma fé monolítica na Unidade:
"Único, Ele preside todos os nascimentos e todas as naturezas; Ele
mesmo é a matriz de tudo" (Swetaswatara Upanishad V. 5). Mas no todo, o
mundo pode saltar de primeira intenção ao Absoluto, há muitos graus, o
primeiro, a Ascensão, e aquele que se acha preparado para compreender uma
pequena Lalita de rosto infantil e para oferecer-lhe seu incenso e suas flores,
não saberia dirigir-se à Mãe eterna no silêncio de seu coração, e outro rejeitará
todas as formas para abismar-se na contemplação Daquilo que não tem nome.
"Tal como os homens vêm a Mim, eu os aceito. É meu caminho ao qual os
homens seguem por toda parte", diz o Gita* (IV. 11). Já se vê, há tantas
maneiras de compreender Deus, em três ou
em milhões de pessoas, que mais vale não dogmatizar nem deixar finalmente um
Deus cartesiano, único e universal a força de estreiteza. Acaso confundamos nós
todavia, unidade e uniformidade. Dentro do espírito desta tradição dirá Sri
Aurobindo: "A perfeição do yoga integral chegará quando cada homem seja
capaz de seguir seu próprio caminho de yoga e de trabalhar pelo desenvolvimento
de sua própria natureza em sua marcha até o que transcende toda natureza.
Porque a liberdade é a lei final e a última realização".3
O hindu tão pouco nunca diz:
"Acredita você em Deus?", porque a pergunta lhe parece tão infantil
como dizer: "Acredita você em CO2?"; o hindu diz
simplesmente: "Faça você mesmo a prova; se faz isso, chegará a aquilo, e
se faz tal coisa, você alcançará tal resultado". Todo o engenho, todo o
esmero e toda a precisão que no Ocidente temos implantado faz cem ou duzentos
anos no estudo dos fenômenos físicos, a Índia os colocou com igual rigor, há
quatro ou cinco mil anos, no exame dos fenômenos interiores; para ser um povo
"sonhador", nos reserva, à verdade, não poucas surpresas. E se somos
honestos, logo veremos que nossos estudos "interiores", quer dizer,
nossa psicologia, nossa psicanálise, nosso conhecimento do homem se encontram
todavia, ainda nas fraldas, pela simples razão de que o conhecimento de si é um
ascetismo tão metódico, tão paciente e às vezes tão fastidioso como os longos
anos de introdução à física nuclear; e se alguém quer progredir nessa ordem das
coisas, não basta a leitura de livros nem o colecionar fichas clínicas e todas
as neuroses de um século descentrado: é preciso pagá-lo com a própria pessoa. Quer dizer verdade, se colocarmos na
investigação de nosso interior tanta sinceridade,
tanta exatidão e tanta perseverança como em nossos livros, logo iríamos muito
longe: o Ocidente nos reserva também não poucas surpresas. Mas seria importante
desfazer-se de certas idéias pré-concebidas: Colombo não traçaria o mapa do
Atlântico antes de haver zarpado do Porto de Palos!

(*
Todos os textos sagrados que citaremos neste ensaio: Upanishads, Vedas, Gita,
etc., foram traduzidos da tradução de Sri Aurobindo.)
Acaso convenha repetir estas
infantis verdades, porque parece que estamos presos entre duas falsidades: a
falsidade cansada e séria dos espiritualistas, que resolveram o caso com Deus
em uns quantos parágrafos infalíveis, e a falsidade não o bastante séria dos
ocultistas e videntes elementais que reduziram o invisível a uma espécie de
sem-vergonhice imaginativa. A Índia nos remete sabiamente à experiência direta
e aos métodos experimentais. Havia Sri
Aurobindo de aplicar esta essencial lição de espiritualidade experimental. Mas
que homens, que material humano ia ele encontrar nesta Índia que não conhecia?
Quando tenhamos deixado de lado a variedade exótica e os costumes tão raros
para nós, que divertem e desconcertam o turista, algo de estranho ficará, pelo
menos, e se dizemos que é um povo gentil, sonhador, fatalista, desapegado do
mundo, haveremos tocado o efeito, não a causa. Estranha é a palavra, porque
espontaneamente, em sua substância física mesma, sem que nele se misture nem
uma só "idéia" nem "fé" alguma, o hindu submerge suas
raízes em outros mundos; ele não é de todo ponto daqui. E esses outros mundos
afloram continuamente nele -"ao menor toque o véu se rasga",
observava Sri Aurobindo-, de tal modo que este mundo físico, para nós tão
absoluto, tão real, tão único, para ele não parece senão uma maneira de viver
entre muitas outras, uma modalidade, entre muitas outras, da existência total;
em suma, uma pequena fronteira caótica, agitada, cansada, penosa, à margem de
"imensos continentes por detrás". "Esta diferença substancial
entre o hindu e os demais povos em nada melhor se manifesta que em sua arte,
como igualmente se manifesta na arte
egípcia (e supomos também, sem conhecê-lo, na arte da América Central), porque
deixam nossas catedrais movimentadas,
abertas, esbeltas como um triunfo do pensamento divino dos homens, e de súbito
nos encontramos no silêncio de Abydos do Nilo em presença de Sekmeth, ou melhor, sob o peristilo de
Dakshineshwar, frente à frente
com Kali, algo sentimos, ficamos
repentinamente atônitos perante uma dimensão desconhecida, uma "certa
coisa" que nos deixa um tanto estupefatos e que, de modo algum, se
encontra em toda nossa arte ocidental. Em nossas catedrais não há segredos.
Tudo está ali, claro e muito limpo, aberto aos quatro ventos para quem tem
olhos exteriores... e, no entanto, quantos segredos... Não se trata aqui de
comparar méritos -seria tão absurdo!-, Senão de dizer simplesmente que algo temos esquecido. Como não nos
surpreendeu, apesar de tudo, que se tantas civilizações, que foram gloriosas e
refinadas antes da nossa -tenhamos a modéstia de admití-lo-, e cujas minorias
seletas não eram menos "inteligentes" que as de nossas Sorbones,
tiveram a visão e a experiência de hierarquias para nós invisíveis e de grandes
ritmos psíquicos que excediam a breve pulsação de uma vida humana única, tudo
isso não era acaso provavelmente uma aberração mental -estranha aberração que
aparece a milhares de léguas em civilizações distantes, uma da outra- nem uma
superstição de velhas damas imaginativas. Temos arrasado a idade dos Mistérios
e tudo é admiravelmente cartesiano, mas falta algo. O primeiro signo do homem
novo acaso seja, o fato de que desperta diante a terrível falta de alguma
coisa, que não lhe dão nem sua ciência, nem suas Igrejas, nem seus ruidosos
prazeres. Não se amputa impunemente o homem de seus segredos. Este era um
testemunho vivo que a Índia deparava a Sri Aurobindo, a menos que ele não o
conhece-se já em sua própria substância.
No
entanto, se supõe que a Índia, em que
sobrevivem antigos Mistérios, nos dará a solução prática que buscamos, corremos
o risco de ver-nos defraudados. Sri Aurobindo, que soube rapidamente apreciar a
liberdade, a amplitude espiritual e o imenso esforço experimental que a Índia
revela ao aspirante, não se deixará ganhar em tudo nem muito menos; não porque
exista nada que rejeitar; nada há que renunciar em parte alguma, nem no
sedicioso hinduísmo nem no cristianismo nem em nenhuma outra aspiração do
homem: antes, melhor, há que ampliá-lo todo, ampliá-lo sem limite algum. O que
normalmente tomamos por uma verdade última não é, muitas vezes, senão una
experiência incompleta da Verdade, e, sem dúvida, a totalidade da Experiência
não existe, no tempo e no espaço, em nenhuma parte, em nenhum ser, por mais
luminoso que seja, porque a Verdade é infinita e vai sempre adiante. "Mas
sempre se coloca sobre os ombros um fardo interminável", dizia um dia a
Mãe, em uma conversação sobre o budismo. "Não se quer deixar nada do
passado e cada vez oprime mais o peso de uma acumulação inútil. Tendes um guia
em uma parte do caminho, mas quando haveis passado essa parte, deixai o caminho
e o guia, e ide mais longe. É uma coisa que os homens fazem com dificuldade;
quando se apoderam de algo que os ajuda, se agarram e logo não querem se mover.
Os que fizeram algum progresso por meio do cristianismo não querem deixá-lo e o
levam sobre os ombros; os que progrediram com o budismo não querem deixá-lo e o
levam sobre os ombros, isto entorpece a marcha e os retarda indefinidamente.
Uma vez que tenha passado a etapa, deixe-a, que se vá! Ide mais longe!" A
lei eterna, sim, mas eternamente jovem e eternamente progressiva. Mas a Índia,
que soube assim mesmo compreender o eterno Iconoclasta que é Deus em sua marcha
cósmica, não sempre teve a força de suportar sua própria sabedoria; o imenso invisível que impregna esse
país havia de fazer-se pagar um duplo resgate, igualmente humano e espiritual.
Humano, porque esses homens saturados do além, conscientes do grande Jogo
cósmico e das dimensões interiores em que nossa pequena vida de superfície se
reduz a um ponto, periodicamente florescida para desaparecer em seguida,
acabaram por descuidar do mundo; a inércia, a indiferença ao progresso, a
resignação foram muitas vezes a máscara da sabedoria. Logo, espiritual (muito
mais grave este), porque nessa imensidão demasiadamente grande para nossa
pequena consciência atual, o
destino da terra, nossa terra, acabava por perder-se nos confins das nebulosas,
ou em nenhuma parte, reabsorvido em Brahman, de onde, depois de tudo, não havia
saído nunca, a não ser em nossos sonhos; o ilusionismo, os transes, os olhos
fechados do yogue, tomaram também muitas vezes a máscara de Deus. Convém,
então, definir com alguma claridade a finalidade geral que a Índia religiosa se
propõe, e então poderemos ver melhor, o que pode ou o que não pode, por nós que
buscamos a verdade integral.
Devemos reconhecer que nos
encontramos diante de uma contradição surpreendente. Há aqui um país que
aportava uma grande revelação. "Tudo é Brahman", dizia, tudo é o
Espírito, esta terra, esta vida, estes homens; nada se encontra fora Dele.
"Tudo isto é Brahman imortal e nada mais; Brahman está diante de nós,
Brahman está detrás de nós, e no norte e no sul, e abaixo e acima de nós. Ele
se estende por toda parte. Tudo isto é Brahman somente, todo este magnífico
universo" (Mundaka Upanishad II. 12). Estava, pois, curada por fim a
dicotomia que faz deste pobre mundo uma disputa entre Deus e o Diabo, como se
fosse preciso sempre escolher entre o céu e a terra, e não ser salvos nunca,
senão mutilados. E, no entanto, praticamente,
a mais de três mil anos, toda a história religiosa da Índia se comportou
como se houvesse um verdadeiro Brahman, transcendente, imóvel, para sempre fora
desta onda de grilos, e um falso Brahman, ou ao menos (e neste ponto se dividem
as escolas) um Brahman menor, de uma realidade intermediária mais ou menos
discutível; quer dizer, a vida, a terra, nossa pobre terra: "Abandona este
mundo de ilusão", escreverá o grande Shankara*.

* Shankara (788 - 820), místico e poeta,
teórico da Mayavada ou doutrina do ilusionismo, que suplantou o budismo na Índia.
"Brahman é verdadeiro,
o mundo uma mentira", diz o Niralamba Upanishad: Brahma satyam jaganmithya. Pese nossa melhor vontade, temos de
confessar que não compreendemos por que deformação ou por qual esquecimento de,
"tudo é Brahman", passou a ser
"tudo, menos o mundo, é Brahman".
Se deixamos de
um lado as Escrituras, porque a mente humana é tão sagaz que facilmente pode
ver ovelhas aparecendo no Obelisco, e se examinamos as disciplinas práticas da
Índia, a contradição vem a ser mais flagrante ainda. A psicologia hindu se
funda, de fato, em uma observação muito criteriosa, a saber: tudo no universo,
desde o mineral até o homem, se acha constituído por três elementos ou
qualidades (gunas) que se
encontram por toda parte, ainda quando lhes pode chamar de um modo, algo
diferente segundo a ordem de realidade a que alguém se incline: tamas, inércia, obscuridade,
inconsciência; rajas, movimento,
luta, esforço, paixão, ação; sattwa, luz,
harmonia, alegria. Em nenhuma parte existe nenhum destes elementos em estado
puro; nós nos encontramos sempre entre a inércia, a paixão e a luz; somos às
vezes sattwico-tamásicos -bons, mas um tanto pesados; cizudos, mas
aceitavelmente inconscientes-; outras vezes somos sáttwico-rajásicos
-apaixonados pela elevação-, ou tamásico-rajásicos -apaixonados pelo baixo-; e
muito mais, uma boa mescla dos três. A luz brilha também no mais negro tamas, mas o inverso é, infelizmente,
verdadeiro também. Em suma, nos encontramos sempre em um instável equilíbrio; o
guerreiro, o asceta e o animal se dividem agradavelmente, em proporções
variáveis, nessa morada. As diversas disciplinas hindus se propõem
reestabelecer o equilíbrio: subtrair-se o jogo das três gunas, que nos lançam incessantemente da luz à obscuridade, do
entusiasmo ao esgotamento, da monotonia à nossas alegrias fugazes e a nossos
sofrimentos reiterados; se propõem, dizemos, situar-se acima de tudo isso; quer
dizer, recobrar a consciência divina (yoga), que é o lugar do perfeito
equilíbrio. A este fim procuram todas elas subtrair-nos ao estado de dispersão
e de resíduos em que vivemos e criar em nós uma concentração bastante poderosa para romper os limites
ordinários e, no momento justo, oscilar em outro estado. Este trabalho de
concentração pode efetuar-se em qualquer nível de nosso ser, vital, físico ou
mental. Podemos praticar, segundo o nível escolhido, este ou aquele yoga:
hatha-yoga, raja-yoga, mantra-yoga e muitos outros, muitíssimos outros que
assinalam a história de nosso esforço. Não vamos discutir aqui a excelência destes
métodos nem os resultados, excessivamente interessantes, a que podem conduzir;
nos preocupam unicamente sua finalidade e seu destino último. Agora bem, este
"situar-se acima" parece não ter nenhuma relação com a vida, diante de tudo porque tais disciplinas, extremamente
absorventes, exigem muitas horas de trabalho diário, ou uma absoluta solidão, e
logo porque o critério do êxito é um estado de transe ou de êxtase yóguico,
samadhi, equilíbrio perfeito, beatitude inefável, em que a consciência se vê arrasada,
absorvida. Brahman, o Espírito, não tem, decididamente, contato com nossa
ordinária consciência de vigília; se encontra fora de tudo o que conhecemos.
Não é deste mundo. Outros, que não eram hindus, disseram-no.
Em realidade,
disseram-no todas as religiões do mundo. E que aqui se fale de salvação e lá de
liberação, mukti, ou se fale de paraíso ou de cessação da roda de
reencarnações, é algo que carece de importância, porque do que se trata,
finalmente, é de sair dela. No entanto, não foi sempre assim. Entre o final da era dos Mistérios,
aqui e ali, e a aparição das grandes religiões, se abriu um abismo, e se
descobriu velado um Conhecimento que não fazia essa tremenda distinção entre
Deus e o mundo, como dão testemunho dele todas as lendas e todas as tradições.
O conflito entre a Matéria e o Espírito é de criação moderna; os sediciosos
materialistas não são outra coisa senão filhos, bastardos ou legítimos, dos
espiritualistas, como os filhos gastadores são criação dos avaros pais. Entre
os primeiros Upanishads de uns três ou quatro mil anos há -herdeiros dos Vedas,
que neste "maravilhoso universo" viam
Deus por toda parte- e nos últimos Upanishads, um Segredo se perdeu, e
se perdeu não somente na Índia, senão também na Mesopotâmia, no Egito, na
Grécia, na América Central. Esse é o Segredo que Sri Aurobindo ia redescobrir,
acaso precisamente porque em seu ser se encontravam juntos o mais puro da
tradição ocidental e a profunda exigência espiritual da Ásia. "O Oriente e
o Ocidente -dizia- têm duas maneiras de ver a vida, que são os dois lados
opostos de uma mesma e só realidade. Entre a verdade pragmática que o
pensamento vital da Europa moderna -apaixonada do vigor da vida e da dança de
Deus na Natureza afirma com tanta veemência e exclusivismo, e a Verdade
imutável e eterna que o pensamento da Ìndia -apaixonado pela calma e pelo
equilíbrio- ama e anseia com igual afinco em sua busca exclusiva, não existe
esse divórcio nem essa querela que pretendem o pensamento partidário, a razão
dissolvente, a absorvente paixão de uma vontade de realização exclusiva. A
verdade una, eterna e imutável, é o Espírito, e sem o Espírito a verdade
pragmática do universo careceria de origem e de fundamento; o mundo estaria
desprovido de sentido, vazio de direção interior, sem destino, um fogo de
artifício que gira no vazio para desvanecer-se em parte alguma. Mas tão pouco a
verdade pragmática é um sonho do não-existente, nem é uma ilusão nem uma
prolongada queda em um delírio fútil da imaginação criadora; seria como dizer
que o Espírito eterno é um ébrio ou um sonhador, ou o demente de sua própria
alucinação gigantesca. As verdades da existência universal são de dois gêneros:
eternas, imutáveis, as verdades do Espírito -mas elas são as que se arrojam ao
Devir, elas as que, aqui embaixo, realizam constantemente seus poderes e seus
signos- e a consciência que joga com elas: dissonâncias, variações, exploração
dos possíveis, reverssões, perversões e conversões ascendentes em um motivo
harmônico cada vez mais alto; e de tudo isso, o Espírito fez e sempre faz a seu
universo. Mas é Ele o mesmo o que trabalha em si; O mesmo, o criador e a
energia criadora, a causa e o método e o resultado das operações, o mecânico e
a máquina, a música e o músico, o poeta e o poema, Ele mesmo, o supramental, a mente, a vida e a
matéria, a alma e a natureza".5
Mas não bastava
a Sri Aurobindo reconciliar no papel o Espírito e a Matéria. Que o Espírito
seja ou não seja deste mundo, importa se o conhecimento do Espírito na vida não
se vê acompanhado de um poder sobre a vida: "A verdade e o conhecimento
são um raio inútil, se o Conhecimento não aciona o poder de mudar o
mundo". O segredo perdido não era uma verdade teórica, senão um poder real
do Espírito sobre a Matéria. Este Segredo pragmático é o que Sri Aurobindo ia
pouco a pouco a redescobrir experimentalmente, ao mesmo tempo que saltava
valorosamente sobre a cultura ocidental e por cima da tradição religiosa hindu;
muito certo é que o essencial emerge quando se esqueceu tudo.
III
OCASO
DO INTELECTO
Treze anos
havia necessitado Sri Aurobindo para recorrer os caminhos do Ocidente; de um
término quase igual haverá, a princípio, para recorrer os da Índia e para
chegar ao "cume" da realização dos yogas tradicionais; quer dizer, no
começo de seu próprio trabalho. Mas o interessante para nós é que ainda estes
caminhos tradicionais, que nós consideramos como uma preparação, Sri Aurobindo
os recorreu livre de todas as regras habituais, como franco atirador poderia
dizer-se ou, mais ainda, como explorador que se cuida pouco das precauções e
dos mapas, e que por isso mesmo evita muitos rodeios desnecessários,
simplesmente porque tem o valor de fazer, decididamente seu caminho. Sri
Aurobindo não buscou a solidão, nem se sentou com as pernas cruzadas para
entregar-se a sua aventura espiritual, nem o fez sob a direção de um mestre
qualificado, senão como poderíamos fazê-lo nós mesmos, somente, sem saber nada
disto, em meio das solicitações correntes da vida -uma vida tão turbulenta e
agitada como a nossa pode sê-lo-. Sem dúvida alguma, o primeiro segredo de Sri
Aurobindo é o haver recusado sempre partir a vida em duas: ação, meditação;
interior, exterior, e toda a gama de nossas falsas divisões; desde o dia que
pensou no yoga, ou pôs nele tudo: o alto e o baixo, o de dentro e o de fora,
tudo lhe parecia bem, e empreendeu o caminho sem voltar atrás os olhos. Sri
Aurobindo não veio a dar-nos testemunho de qualidades excepcionais em um meio
também excepcional, senão a demostrar-nos o que é possível ao homem, que o
excepcional é somente uma normalidade não conquistada todavia, assim como “o
sobrenatural -dizia- é um natural que não alcançamos ainda ou que todavia não
conhecemos, ou do qual não temos ainda a chave". No fundo, tudo neste
mundo é assunto de adequada concentração; nada há que não acabe por ceder a uma
concentração bem dirigida.
Quando desembarca do Apollo Bunder em Bombay,
lhe acompanha uma experiência espiritual espontânea, uma calma imensa se
apodera dele; mas ele tem diante de si outros problemas: comer, viver. Está
então nos vinte anos. O Marajá de Baroda lhe confere o posto de professor de
francês, logo o de língua inglesa no College do Estado, de que logo chega a ser
diretor adjunto. Ao mesmo tempo desempenha as funções de secretário particular
do Príncipe. A corte e o ensinamento absorvem seu tempo, mas a ele lhe preocupa
a sorte da Índia. Realiza numerosas viagens a Calcutá, se inteira da situação
política, escreve artigos que suscitam escândalo, porque não se dá por
satisfeito com dizer que a rainha-imperatriz da Índia é uma "velha dama
assim chamada por cortesia",2 senão que convida seus compatriotas a sacudir o julgo e critica
vivamente a "política perniciosa" do Congresso Indiano: "nada de
reformas, nada de colaboração". Seu propósito é organizar todas as
energias da nação com olhares a uma ação revolucionária. Não pouco valor era
necessário para isto, se considera-se que em 1892 a hegemonia britânica se
estendia sobre três quartos do mundo. Mas Sri Aurobindo possui uma maneira particular
de afrontar o problema; não a toma contra os ingleses, senão contra os próprios
indianos: "Nosso verdadeiro inimigo não se encontra em uma força alheia a
nós mesmos, senão em nossas estridentes debilidades, em nossa covardia, em
nosso míope sentimentalismo". Já aqui nos encontramos com uma nota
dominante do caráter de Sri Aurobindo, quem, assim na luta política e na
batalha espiritual como em todas as circunstâncias, nos convida a buscar em nós
mesmos, não fora nem em nenhum outro lugar, as causas de nosso infortúnio e dos
males do mundo: "As circunstâncias externas são justamente o fruto do que
nós somos", dirá mais tarde àquela que haveria de compartilhar sua obra.
Logo, houve de reconhecer Sri Aurobindo, que os artigos do jornal não bastavam
para despertar seu país; se entrega então à ação secreta, que lhe levará até os
umbrais da forca. Durante treze anos, brinca Sri Aurobindo com fogo.
No entanto, não era um homem inquieto e
exaltado: "Seu sorriso era simples como o de uma criança, límpido e
doce", escrevia seu professor de bengali, que viveu dois anos em sua
companhia (Sri Aurobindo havia dedicado-se, como era natural, ao estudo de sua
língua materna), e com ingenuidade comovedora, seu professor acrescenta:
"Antes de conhecer Aurobindo eu
imaginava-o uma silhueta vigorosa, dos pés à cabeça, um acento inglês espantoso
(de Cambridge, evidentemente) e um caráter difícil e o extremo... Quem houvesse
dito que aquele moço de pele bronzeada, de olhos doces e sonhadores, de longos
e dóceis cabelos partidos en dois que caiam sobre a nuca, vestido de um
ordinário dhoti de Ahmendabad, de tela grossa, e uma jaqueta indiana ajustada,
calçado com babuchas à moda antiga com as pontas respingadas, e o rosto
ligeiramente assinalado pelas marcas da varíola, não fosse outro senão Monsieur
Aurobindo Ghose, um poço vivo de francês e de latim e grego?".
Mas além disso, Sri Aurobindo não deixou ainda
a companhia dos livros, todavia se encontra dentro da corrente ocidental;
devora caixas dos livros pedidos a Bombay e a Calcutá. "Aurobindo
sentava-se a sua mesa de trabalho -acrescenta seu professor bengali- e lia, à
luz de uma lâmpada de óleo, até a uma da manhã, sem cuidar-se da picada
intolerável dos mosquitos. Via-o permanecer sentado sem mudar de postura, com
os olhos fixos sobre seu livro durante longas horas, como um yogue sumido na
contemplação divina, alheio a tudo quanto ocorria em seu entorno. Nem o incêndio da casa haveria
podido interromper, sua concentração". As novelas inglesas, russas, alemãs
e francesas passavam assim sobre seu olhar, mas também os textos sagrados da
Índia, os Upanishads, o Gita, o Ramayana, sem que ele pusesse nunca os pés em
um templo, a não ser por mera curiosidade. "Um dia -conta um de seus
companheiros- em seu retorno do Colégio, Sri Aurobindo se sentou e, tomando um
livro ao acaso, se dedicou à leitura ao momento que Z... e alguns amigos seus
se entregavam a uma buliciosa partida de xadrez. Ao cabo de meia hora deixou o
livro e bebeu uma taça de chá. Muitas vezes o havíamos visto fazer o mesmo e
aguardávamos com impaciência a ocasião de comprovar se em verdade lia seus
livros de um cabo a outro ou se somente recorria, aqui e ali, algumas páginas.
A prova começou em seguida. Z... abriu o livro ao acaso, leu em voz alta um
pedaço e pediu a Sri Aurobindo que recitasse o que seguia. Sri Aurobindo se
concentrou um momento e repetiu toda a página sem o menor equívoco. Se era
capaz de ler uma centena de páginas em meia hora, como assombrar-se de que
lesse uma caixa de livros em um tempo incrivelmente curto!". Mas Sri
Aurobindo não se detinha à tradução dos textos sagrados; se deu ao estudo do
sânscrito, que aprendeu sem ajuda de ninguém; feito muito característico,
porque basta que algo se repute difícil ou impossível, para que ele não permita
que ninguém -gramático, pandit ou clérigo- lhe engane, e para que queira fazer
ele mesmo a experiência. É preciso crer que o método resultava eficaz porque
não só aprendeu o sânscrito, senão que descobriu, alguns anos depois, o sentido
já esquecido dos Vedas.*
Um dia chegou,
de súbito, no qual que Sri Aurobindo sentiu o fastídio desta ginástica
intelectual.

* A época dos Vedas, anterior à dos
Upanishads e esta, portanto, herdeira daquela, se situa além do quarto milênio
antes de Cristo.
Sem dúvida
havia percebido que o homem pode continuar indefinidamente amassando
conhecimentos, lendo sem cessar e aprendendo idiomas, e ainda ler todos os
livros e aprender todas as línguas do mundo sem conseguir com isso avançar
sequer uma polegada. Porque a mente não trata de conhecer de verdade, ainda que
em aparência o faça; trata mais, ou melhor, de moer. Sua necessidade de
conhecimento é, antes de tudo, uma necessidade de ter algo que moer. E, se por
ventura, a máquina pára porque encontrou o conhecimento, a mente se rebelará
sem dilação e achará algum novo moinho para dar-se o gosto de continuar moendo
sempre. Tal é sua função. E, não é por certo a mente, a que em nós trata de
conhecer e de progredir, senão algo que se encontra detrás e que se serve dela.
"O período decisivo de meu desenvolvimento intelectual -dirá Sri Aurobindo
a um discípulo seu- se produziu quando pude ver claramente que quanto dizia o
intelecto podia ser igualmente exato e inexato, que quando o intelecto
justificava era verdadeiro e que o contrário também o era. Eu não admitia nunca
uma verdade em minha mente sem admitir ao mesmo tempo seu contrário...
Resultado: a magia do intelecto havia se
esfumaçado".4
Sri Aurobindo
chegou a uma encruzilhada; os templos não lhe interessam, e os livros carecem de
conteúdo. Um amigo lhe aconselhou o yoga. Sri Aurobindo rejeitou o conselho:
"Um yoga que exige que eu abandone o mundo, não foi feito para mim e ainda
acrescenta: "o bem solitário que deixa o mundo entregue a sua sorte, é uma
coisa quase repugnante".6 Um dia tem lugar na presença de Sri
Aurobindo uma cena curiosa, ainda que trivial na Índia; mas a trivialidade, às
vezes é o meio mais eficaz de produzir o desencadeamento de fenômenos internos;
encontrando-se seu irmão Barin enfermo de uma febre maligna (Barin, nasceu
depois da ido de Sri Aurobindo para a Inglaterra, a servia de emissário secreto
para a organização da resistência indiana na Bengala), passava por ali um
desses monjes errantes, seminus e com o corpo coberto de cinzas, a quem se dá o
nome de nagasannyasin. Sem dúvida mendigava o monje de porta em porta, como de
costume, seus alimentos, quando viu Barin tremendo de febre.
Sem dizer uma
só palavra, pediu um copo de água, traçou sobre ele um signo e, salmodiando um mantra, deu a beber o vaso de água ao
enfermo. Cinco minutos depois Barin estava curado e o monge havia desaparecido.
Sri Aurobindo já havia ouvido falar dos estranhos poderes de tais ascetas, mais
desta vez pôde vê-los com seus próprios olhos. Se percebe então que o yoga pode
servir para algo mais que uma simples evasão do mundo.
Agora bem,
Aurobindo necessita de poder para
liberar a India. "Havia em mim um agnóstico, havia um ateu, um cético; eu
não estava sequer, em todo caso, seguro de que um Deus existisse... Só sentia
que alguma poderosa verdade devia existir em alguma parte desse yoga.
Entreguei-me, pois, ao yoga e decidi praticá-lo a fim de comprovar se minha
idéia podia justificar-se; com essa intenção o fiz, dirigindo-lhe esta prece:
«Se Tu existes, Tu conheces meu coração... Bem sabes que não peço a liberação
-mukti-; nada peço do que reclamam os demais. Só quero a força necessária para
elevar esta nação, não peço senão poder viver e trabalhar por este povo que
amo»".7
Deste modo
empreendeu Sri Aurobindo a marcha.
IV
O
SILÊNCIO MENTAL
As
construções mentais
O silêncio mental
é a primeira etapa do yoga de Sri Aurobindo; é, assim mesmo, a tarefa
fundamental que dá a chave de não poucas realizações: Por que o silêncio
mental? É evidente que se queremos descobrir em nós mesmos um mundo novo,
devemos antes de tudo abandonar o velho, e tudo depende da determinação com a
qual cruzemos o umbral. Algumas vezes, com uma chispa é suficiente; algo em nós
exclama: "Basta de absurdos!" e nos decidimos de uma vez e avançamos
sem voltar os olhos para trás. Outros dizem, às vezes, sim, outros dizem
não, e oscilam indefinidamente entre ambos os mundos. Digamos com toda
claridade: não se trata de amputar-nos, em nome de não se sabe qual
Sabedoria-Paz-Serenidade (nesta ordem das coisas, tão pouco faremos alarde de
grandes palavras), de um bem penosamente adquirido, pois não nos interessa a
santidade, senão a juventude -a juventude eterna de um ser que cresce-, nem
tratamos de ser menos, senão de ser melhores e, sobretudo, de ser maiores.
"E não os teria ocorrido pensar que se buscassem algo frio, obscuro e
triste, os sábios não seriam sábios, senão asnos!", exclamava com
humorismo Sri Aurobindo.
Não poucos
descobrimentos se fazem quando a mecânica deixa de funcionar, e o primeiro
deles é que se o poder de pensar é um dom maravilhoso, muito maior o é o poder
de não pensar; 2 que trate o aspirante de conseguí-lo durante cinco minutos
somente e verá o que lhe ocorre. Advertirá que vive dentro de uma sobreposição
de ruídos, dentro de um turbilhão esgotador, mas não esgotado nunca, no qual
não há lugar senão para seus pensamentos, para seus impulsos, para seus
sentimentos e suas reações; ele, sempre ele, enorme, gnomo que tudo encobre que
não se ouve nem se vê senão a si mesmo, nem conhece mais que a si próprio,
cujos temas perpétuos, mais ou menos alternados, podem criar a ilusão da
novidade. "Em certo sentido não somos outra coisa senão uma complexa massa
de hábitos mentais, físicos e nervosos, unidos todos por algumas idéias
diretivas, por desejos e associações; não somos senão o amálgama de inumeráveis
e minúsculas forças que se repetem, com algumas vibrações maiores".3 Pode
dizer-se que aos dezoito anos estamos já definidos, que se fixaram já nossas
vibrações maiores e que entorno a elas virão a agregar-se de maneira ilimitada,
em capas cada vez mais densas, polidas e refinadas, os sedimentos de uma mesma
e coisa eterna de mil facetas, que nós chamamos cultura ou "nós
mesmos"; em uma palavra, nos encontramos encerrados em uma construção que
pode ser de chumbo e sem uma só clarabóia, ou esbelta como um minarete, mas
encerrados sempre, rumorosos, reiterativos, homens em uma pele de granito ou em
uma estátua de vidro. O primeiro trabalho do yoga é o de respirar com
liberdade, e, naturalmente, o de fazer em pedaços essa tela mental que não
deixa passar senão uma só classe de vibração destroçá-la para conhecer a
infinidade multicolor das vibrações; quer dizer, o mundo e os seres tal como
são, e outro "nós mesmos" que vale mais do que ordinariamente se
acredita.
Meditação
ativa
Quando alguém se
senta com os olhos fechados para procurar o silêncio mental, se vê em seguida
envolvido por uma torrente de pensamentos que surgem de todos os lados como
ratos enlouquecidos, e ainda agressivos. Não existem muitos métodos para
superar esse tumulto, senão somente o de ensaiar e ensaiar continuamente, com
paciência e obstinação. E sobre tudo, não cometer o erro de lutar mentalmente
contra a mente; é preciso mover o centro. Cada um de nós tem, acima da mente,
ou em um local mais profundo, uma aspiração, a mesma que nos moveu a colocar os
pés no caminho, uma necessidade de nosso ser, como um santo e senha
válida só para nós; se alguém se agarra a isto, mais fácil se torna o trabalho,
porque de uma atitude negativa- passamos a uma atitude positiva, e quanto mais
repetirmos nosso santo e senha, maior poder adquirirá este. Pode alguém também
servir-se de uma imagem, como a de um mar imenso, sem uma só ondulação, no que
se deixa flutuar, se coloca de barriga para cima na água e se identifica com
essa tranquila imensidão; ao mesmo tempo aprendemos no só o silêncio, senão que
conseguimos a ampliação da consciência. Em realidade, cada qual deve encontrar
seu próprio método, e quanto menor seja a tensão que nela coloque, mais
rapidamente conseguirá seu propósito: "Pode-se começar por um procedimento
qualquer, que simplesmente requerirá um longo trabalho, e ser oprimido desde o
princípio por uma rápida intervenção ou uma manifestação do Silêncio, com efeitos
em absoluto desproporcionais aos meios de que jogou no começo. Começa-se por um
método, mas o trabalho se vê continuado por uma Graça do alto. Isso mesmo a que
se aspira, ou por uma erupção das infinitudes do Espírito. Deste modo encontrei
eu mesmo o silêncio absoluto da mente, inimaginável para mim antes de haver
tido a experiência concreta".4 Tocamos aqui um ponto muito importante,
porque nos sentimos tentados a pensar que estas experiências yóguicas são muito
formosas e interessantes, mas que, depois de tudo, se encontram distantes de
nossa humanidade comum; como poderíamos nós, tal como somos, chegar alguma vez
a elas? O erro está em julgar com nosso eu atual as possibilidades que
pertencem a outro eu. Mas, de modo automático, o yoga desperta, precisamente
com somente o colocar nossos pés em seu caminho, toda uma gama de faculdades
latentes e de forças invisíveis que superam consideravelmente as possibilidades
de nosso ser externo e podem fazer por nós o que nós somos normalmente
incapazes de fazer: "O que se necessita é aclarar o passo entre a mente
externa e o ser interior ... porque a consciência yóguica e seus poderes já se
encontram em nós",5 e a melhor maneira de "aclarar" é fazer o
silêncio. Não sabemos o que somos, e menos ainda sabemos de que somos e do que
não somos capazes.
Mas os exercícios
de meditação não nos dão a verdadeira solução do problema (se bem é verdade que
no princípio são muito necessários para dar o impulso inicial), porque
alcançaremos talvez um silêncio relativo, mas quando colocamos os pés fora de
nosso quarto ou de nosso retiro, voltaremos a cair no tumulto habitual e se
repetirá a eterna separação do de dentro e do de fora, da vida interior e da
vida do mundo. Mas nós necessitamos uma vida completa, necessitamos viver a verdade
de nosso ser, todos os dias, em todo momento, não somente os dias de folga ou
na solidão, e nenhuma solução se encontra para isto nas meditações beatificadas
e praticadas no isolamento: "Corremos o risco de nos aquartelarmos em
nossa reclusão espiritual e depois nos será difícil projetar-nos vitoriosamente
para fora, para aplicar na vida o que tenhamos ganho na Natureza superior. E
quando queiramos agregar também este reino exterior à nossas conquistas
interiores, nos encontraremos em extremo acostumados a uma atividade puramente
subjetiva e não teremos nenhum poder na ordem material. Tropeçaremos com uma
imensa dificuldade para transformar a vida exterior e o corpo. E ainda nos
daremos conta de que nossa ação não corresponde à luz interior, que continua pelos
velhos caminhos habituais e cheios de erros, e que todavia obedece às velhas
influências imperfeitas; um abismo doloroso se interporá entre a Verdade que se
encontra em nós e o obscuro mecanismo de nossa natureza externa... É como se
vivêssemos em outro mundo, mais vasto e sutil, mas sem influência de nenhum
gênero sobre a vida material e terrestre".6 A única solução consiste em
praticar o silêncio mental ali onde parece mais difícil, na rua, no trânsito,
no trabalho, por toda parte. Em vez de recorrer quatro vezes por dia o bulevar
Saint Michel como um homem extenuado que vai apressado, se pode fazer
conscientemente o recorrido quatro vezes, como um homem que busca a verdade. Em
vez de viver estressado e na correria, disperso em uma multidão de pensamentos
que não só carecem de interesse, senão que são esgotadores como um incômodo, se
unem todos os fios dispersos da consciência e se trabalha -se trabalha em si
mesmo em todo momento, e a vida começa a revestir-se de um interesse de todo
ponto inusitado, porque as menores circunstâncias vêm a ser a ocasião de uma
vitória; caminhamos então bem orientados, caminhamos numa direção fixa, em vez
de ir -sem saber donde.
Porque o yoga não
é uma maneira de fazer, senão uma maneira de ser.
Transição
Vamos, pois, em
busca de outro país, mais preciso, quer dizer, entre o que deixamos atrás e o
que, todavia temos por adiante, existe uma terra de ninguém extremamente
penosa. É um período de poema mais ou menos longo, segundo seja nossa
determinação; mas em todos os tempos -sabemos bem-, desde as iniciações
asiáticas, egípcias e órficas até a busca do Santo Graal, a história de nossa
ascensão sempre esteve acompanhada de provas. Antigamente essas provas
eram de índole romântica e nada de maligno tinha o fato de fazer-se encerrar em
um sarcófago ao som dos pífanos ou de celebrar os próprios ritos fúnebres em
volta de uma fogueira; hoje conhecemos sarcófagos públicos e vias que são uma
maneira de enterro. Vale mais a pena fazer um esforço para sair dali.
Consequentemente, se bem se olha, não temos muito que perder.
A prova principal
desta transição é o vazio interior. Depois de haver vivido em febril
desassossego mental, se alguém se encontra de súbito como um convalescente, um
pouco flutuante, com estranhas ressonâncias na cabeça -como se este mundo fosse
espantosamente ruidoso, fatigante- e uma sensibilidade sobre aguda que dá a
impressão de que alguém se choca por toda parte com homens opacos e agressivos,
com objetos grosseiros, com acontecimentos brutais; o mundo parece enormemente
absurdo. É o signo evidente de um começo de vida interior. No entanto, se por
meio da meditação se trata de descender conscientemente ao interior, se
encontra assim mesmo o vazio, uma espécie de poço escuro ou de neutralidade
amorfa; se persistisse em descender, pode-se cair bruscamente no sonho um
instante, dez segundos, talvez dois minutos, algumas vezes mais, ainda que não,
por certo, em um sonho comum; só passamos a outra consciência mas ainda não há
união entre as duas, e se sai dela em aparência menos adiantado do que alguém
se achava ao entrar. Esta situação transitória poderia facilmente conduzir a
uma espécie de nihilismo absurdo: nada fora, dentro tão pouco nada. Nem de um
lado nem de outro. Depois de haver demolido nossas construções mentais
externas, devemos ter muito cuidado de não encerrar-nos de novo em uma falsa
profundidade, sobre outra construção absurda, ilusória ou cética, acaso
pseudo elevada. Há que ir além. Quando se tomou o caminho do yoga é preciso ir
até o fim, custe o que custar, porque se solta o fio, se corre o perigo de não
voltar a pegá-lo nunca.
Nisto reside em
verdade a prova. O aspirante deve compreender, simplesmente, que começa a
nascer para outra coisa e que seus novos olhos, seus novos sentidos, como os de
um recém nascido que aparece no mundo, não estão formados ainda. Não significa
isto uma diminuição de consciência, senão o passo a uma nova consciência:
"É preciso que o copo do ser fique vazio e limpo para encher-se de novo de
licor divino".7 O único recurso que em tais circunstâncias temos à mão é o
de aferrar-nos à nossa aspiração e o de fazê-la crescer justamente por meio,
dessa terrível carência total, como uma fogueira à qual alojamos todas nossas
velhas coisas, nossa velha vida, nossas velhas idéias, nossos sentimentos;
temos, simplesmente, uma fé inquebrantável em que, atrás desse passo, existe
uma porta que se abre. E nossa fé não é absurda; não é a cegueira do carbono,
senão um préconhecimento, algo em nós que sabe mais que nós mesmos, que vê além
de nós mesmos e que, sob a forma de necessidade, de busca, de fé inexplicável,
envia sua visão à superfície. "A fé, diz Sri Aurobindo, é uma intuição que
não só espera a experiência para ver-se justificada, senão que conduz à
experiência mesma".8
Descenso
da Força
E paulatinamente
se vai preenchendo o vazio. Alguém faz então uma série de observações e passa
por experiências de importância considerável, que seria impróprio apresentar
como uma sequência lógica, porque desde o momento em que se deixa o velho
mundo, alguém se dá conta de que tudo é possível, principalmente que não há
dois casos semelhantes; daí o erro de todos os dogmatismos de ordem espiritual.
Nós só podemos traçar algumas linhas gerais da experiência.
Antes de tudo,
quando a paz mental, a falta de silêncio absoluto, se encontra relativamente
estabelecida e nossa aspiração ou nossa necessidade cresceram, é já
permanente, pulsantes, como um vazio que levamos conosco, se observa um
primeiro fenômeno que terá calculáveis consequências sobre tudo o resto de
nosso yoga. Sente-se em volta da cabeça e de modo especial na nuca, como uma
pressão inusitada, que pode parecer uma falsa dor de cabeça. Ao princípio não
se pode suportar muito tempo, e se sacode, perde a concentração, "pensa em
outra coisa". Pouco a pouco esta pressão toma uma forma mais distinta e se
sente uma verdadeira corrente que descende, uma corrente de força que não é
semelhante a uma corrente elétrica desagradável, senão como a uma massa fluida.
Alguém se dá conta então de que a "pressão" -ou falsa dor de cabeça-
no princípio era causada simplesmente por nossa resistência ao descenso dessa
Força e que o único que deve fazer-se é não obstruir o passo, quer dizer, não
bloquear a corrente na cabeça, senão deixá-la descender a todas as zonas de
nosso ser, de cima abaixo. Em um princípio essa corrente é muito esporádica,
irregular, e é preciso um pequeno esforço consciente para recobrá-la quando se
desvaneceu; depois se torna contínua, natural, automática, e dá a impressão,
muito agradável por certo, de uma energia fresca, como outra respiração, mais
vasta que a dos pulmões, que nos envolve, nos banha, nos sutiliza e, ao mesmo
tempo, nos enche de solidez. O efeito físico é exatamente igual ao que se sente
quando se caminha com o rosto ao vento. Em realidade não nos percebemos de seu
efeito (porque este se produz gradualmente, por pequenas doses) senão quando,
por uma ou por outra razão -distração, erro, excesso-, perdemos ao contato da
corrente; então nos encontramos de pronto vazios, como se repentinamente nos
faltasse o oxgênio, com a sensação muito desagradável de um endurecimento
físico; somos então como uma velha maçã que perdeu seu suco e seu sol. E nos
perguntamos como haveríamos podido antes viver sem ele. Isto é já uma primeira
transmutação de nossas energias. Em vez de recorrer à fonte comum, à vida
universal, acudimos ao alto. E esta é uma energia muito mais clara e
sustentada, sem lacunas e, sobretudo, muito mais vivas. Na vida
cotidiana, em meio de nosso trabalho e de nossas múltiplas ocupações, a
corrente dessa força se encontra ao princípio muito diluído, mas logo
prontamente nos detemos um momento e nos concentramos se produz o fluxo
massivo. Tudo se imobiliza. Se for como um cântaro cheio; ainda a sensação de
"corrente" desaparece como se, da cabeça aos pés, estivesse o corpo
carregado de uma massa de energia compacta e cristalina simultaneamente
("um bloco de paz sólida e fresca", diz Sri Aurobindo)9, e se nossa
visão interna começou já a abrir-se, advertimos que tudo tem um matiz azul;
somos como uma água-marinha, e vastos, vastos. Tranquilos, sem uma só onda. E
esta frescura inefável. Em verdade, nos encontramos submergidos, na Fonte.
Porque esta "força descendente" é a Força mesma do Espírito -Shakti-.
A força espiritual não é uma palavra. Finalmente, já não será necessário fechar
os olhos e retirar-se da superfície para senti-la; em todo momento estará
presente, sem que tenha nenhuma importância o que se faça, o que se come ou o
que leia ou fale, e se verá que cobra maior intensidade a medida que o
organismo se habitua; em realidade, é uma massa de energia formidável limitada
só pela estreiteza de nossa receptividade ou de nossa capacidade.
Quando falam de
sua experiência a respeito desta força descendente, os discípulos de Pondicherry
dizem: "A força de Sri Aurobindo e da Mãe"; com isto não querem dizer
que esta Shakti seja propriedade pessoal de Sri Aurobindo ou da Mãe; sem
querê-lo, dão assim expressão ao fato de que essa força não tem equivalente em
nenhum yoga conhecido. Aqui tocamos experimentalmente a diferença fundamental
que existe entre o Yoga integral de Sri Aurobindo (purna yoga) e os demais
yogas. Ao exercitarmos outros métodos de yoga antes que o de Sri Aurobindo,
pode alguém aperceber-se, de fato, de uma diferença prática essencial: ao cabo
de algum, tempo se tem a experiência de uma Força ascendente (chamada kundalini
na Índia), que desperta muito bruscamente em nosso ser, na base de nossa coluna
vertebral, e se eleva de nível em nível, até que alcança o ápice do crânio,
onde parece abrir-se em uma espécie de pulsação luminosa, radiante, acompanhada
de uma sensação de imensidade (e, muitas vezes, de uma perda de consciência,
chamada êxtase) como se desembocasse eternamente em outra Parte. Todos os
procedimientos yóguicos, que poderíamos chamar termos geradores (ásana do Hatha
Yoga, concentrações do Raya-Yoga, exercícios respiratórios ou pranayama, etc.)
tratam de despertar essa Força ascendente; tais procedimentos carecem de
perigos e podem precipitar profundas perturbações, pelo qual são indispensáveis
a presença e a proteção de um Mestre experimentado. Mais adiante nos
referiremos a este ponto. Semelhante diferença de sentido da corrente
-ascendente ou descendente- obedece a uma diferença de orientação que não saberíamos
sublinhar o suficiente.
Os diversos
yogas tradicionais, e -assim o supomos- também as disciplinas religiosas do
Ocidente, buscam essencialmente a liberação da consciência: todo o ser se
encontra tenso para o alto em uma aspiração ascendente; trata de romper as
aparências e de emergir lá em cima, na Paz ou no êxtase. Daí o despertar dessa
Força ascendente. Mas, já se viu a meta de Sri Aurobindo não é só subir, senão
descender, não só alcançar a Paz eterna, senão transformar a Vida e a Matéria,
e, em primeiro lugar, esta pequena vida e este pedaço de matéria que somos nós.
Daí o despertar ou, melhor, a resposta desta Força descendente. Nossa
experiência da corrente descendente é a experiência da Força transformadora.
Ela é a que fará o yoga por nós, automaticamente (desde que a deixemos atuar);
ela é a que substituirá nossas energias logo estejam esgotadas, e nossos
desatentos esforços; ela a que começará por onde terminam os demais
yogas, iluminando primeiro o ápice de nosso ser, descendendo logo, de nível em
nível, suavemente, suavemente, de maneira irresistível (devemos observar que
nunca é violenta, que seu poderío se encontra estranhamente dosificado, como se
Ela fosse guiada de modo direto pela Sabedoria do Espírito) e Ela é a que
universalizará todo nosso ser, até embaixo. Esta é a experiência básica do yoga
integral. "Quando a Paz se estabeleceu, a Força superior ou divina, do
alto, pode descender e trabalhar em nós. Comumente, descende primeiro à cabeça
e libera os centros mentais, logo ao centro do coração... depois à região do
umbigo e dos centros vitais... em seguida à região do sacro e mais embaixo...
Trabalha a um mesmo tempo no aperfeiçoamento e na liberação de nosso ser; se
apossa de nossa natureza inteira, parte por parte, descartando o que deve
descartar-se, sublimando tudo quanto deve ser sublimado, criando o que
deve criar-se. Ela, integra, harmoniza, estabelece um ritmo novo em nossa
natureza".
Com o silêncio mental se produz outro fenômeno, muito importante, mas mais difícil de desentranhar, porque às vezes se estende ao longo de muitos anos e ao princípio são imperceptíveis os sinais que o revelam; é o que poderíamos chamar nascimento de um novo modo de conhecimento e, portanto, de um novo modo de ação. Pode-se compreender que seja possível alcançar o silêncio mental quando se caminha entre a multidão, quando se come, quando se faz a higiene pessoal ou quando se descansa, mas, como é possível alcançá-lo quando se trabalha na oficina, por exemplo, ou quando se discute com amigos? Vemo-nos então obrigados a refletir, a apelar à memória, a buscar, a fazer que intervenha toda classe de mecanismos mentais. A experiência nos ensina, no entanto, que esta necessidade não é inevitável, que só é o resultado de uma longa evolução, no curso do qual nos acostumamos a depender da mente para conhecer e atuar, mas que se trata somente de um hábito que pode modificar-se. No fundo, o yoga não é tanto uma maneira de aprender, senão muito mais, uma maneira de desaprender uma multidão de hábitos que se consideram imperativos e que temos herdado de nossa evolução animal.
Se o aspirante se coloca no silêncio mental no trabalho, por exemplo, passará por muitas etapas. No princípio será muito capaz de recordar-se de vez enquanto de sua aspiração e de interromper por um momento seu trabalho para colocar-se de novo na verdadeira longitude de onda, logo tudo será outra vez absorvido pela rotina. Mas, a medida que vá adquirindo o hábito de esforçar-se em outra parte, na rua, em sua casa, em toda parte, o dinamismo desta força tenderá a perpetuar-se e a solicitá-lo inesperadamente em meio de suas demais atividades, e ele se recordará dela cada vez com maior frequência. Logo, essa lembrança modificará pouco a pouco de caráter; em lugar de uma interrupção voluntária para voltar a ajustar-se ao verdadeiro ritmo, o aspirante sentirá algo que vive no fundo de si, em um lugar remoto de seu ser, como uma pequena vibração surda; bastará-lhe adentrar um tanto em sua consciência para que, em qualquer momento, reapareça em um instante a vibração do silêncio. Descobrirá então que está ali, sempre ali, atrás, como uma profundidade azulada, e que pode, a vontade, refrescar-se nela, relaxar-se nela, ainda em meio do tumulto e das contrariedades; descobrirá que leva consigo um retiro inviolável e apaziguador.
Logo, no entanto, esta vibração remota será cada vez mais e mais perceptível e contínua, e o aspirante sentirá operar-se uma separação em seu ser: uma profundidade silenciosa que vibra, que vibra atrás, e na superfície, muito tênue - ali onde se desenvolvem as atividades -, os pensamentos, os gestos, as palavras. Haverá descoberto nele o Testemunho e cada vez se deixará agarrar menos pelo jogo exterior que trata sem cessar, como um polvo, de tragar-nos vivos; é um descobrimento tão velho como o Rig-Veda. "Dois pássaros de asas esplêndidas, amigos e companheiros, se encontravam ligados à uma árvore comum, e um come o fruto doce, e o outro o olha e não come" (I. 164.20). Nesta etapa será cada vez mais fácil ao aspirante intervir, voluntariamente no princípio, para substituir os velhos hábitos superficiais de reflexão mental, de memória, de cálculo, de previsão, pelo hábito de ir silenciosamente a esta profundidade que vibra. Na prática, este será um longo período de transição com retrocessos e avanços (a impressão, contudo, não é tanto de um retrocesso ou de um avanço, como a de algo que se cobre e se descobre alternativamente), em que os dois funcionamentos se encontrarão frente à frente, os velhos mecanismos mentais tenderão constantemente a interferir e a cobrar seus antigos direitos; em uma palavra, a persuadir-nos de que não podemos prescindir deles; eles se beneficiarão principalmente de uma espécie de preguiça que nos move a encontrar que é mais cômodo proceder "como de costume". Mas este trabalho de desligamento será poderosamente ajudado, em parte pela experiência da Força descendente que, de maneira automática, incansavelmente, colocará ordem na casa e exercerá uma pressão silenciosa sobre os mecanismos rebeldes, como se cada assalto de pensamento fosse apressado, congelado ali mesmo, e, de outra parte, pela acumulação de milhares de pequenas experiências, cada vez mais perceptíveis, que nos farão tocar e compreender que muito bem podemos prescindir da mente, e que assim nos encontramos, em verdade, muito melhor.
Paulatinamente, de fato, nos apercebemos de que não é necessário refletir, que alguma coisa por trás ou por cima realiza todo o trabalho, com uma precisão e uma verdade cada vez maior a medida que adquirimos o hábito de ir a ela; nos daremos conta de que não é necessário apelar à memória, e de que no momento justo surge a indicação precisa; nos apercebemos assim mesmo de que não é necessário combinar sua ação, pois um segredo fresco a coloca em movimento sem que nós o queiramos ou sem que pensemos nele, e nos move a fazer exatamente o que devemos fazer, com uma sabedoria e uma previsão que nossa mente, sempre míope, é incapaz de alcançar. E veremos que, quanto maior obediências prestem a essas inesperadas intimações, a essas sugestões-relâmpago, maior tendência terão estas a ser cada vez mais frequentes, mais claras, mais imperiosas, mais habituais, um pouco semelhantes ao que seria um funcionamento intuitivo, com a diferencia capital de que nossas intuições são quase sempre confundidas, deformadas pela mente, o qual, por outra parte, é muito esperta para imitá-las e para fazer-nos tomar nossos caprichos por verdadeiras revelações, entanto que no outro caso se tratará de uma transmissão clara, silenciosa, correta, pela simples razão de que a mente estará muda. Todos passamos pela experiência desses problemas "misteriosamente" resolvidos no sonho, quer dizer, precisamente quando a máquina de pensar se encontra calada. Sem dúvida alguma incorrerá não em poucos erros e em numerosos passos falsos antes que o novo funcionamento se estabeleça com alguma segurança, mas o aspirante deve estar disposto a equivocar-se muito, às vezes; se dará conta, em realidade, de que o erro procede sempre de uma intrusão da mente; cada vez que esta intervém, confunde tudo, fraciona tudo, retarda tudo. Logo, um dia, pela força dos erros e de reiteradas experiências, haveremos compreendido para sempre e visto com nossos próprios olhos que "a mente não é um instrumento de conhecimento, senão somente um organizador do conhecimento", como a Mãe o comprovou, e que o conhecimento procede de outra parte.* No silêncio mental vem as palavras, vem os atos, tudo vem, automaticamente, com uma exatidão e uma rapidez surpreendentes. É, em realidade, outra maneira de viver, muito espontânea. Porque, na verdade, "nada faz a mente que não se possa fazer, e fazer-se melhor, na imobilidade mental e numa tranquilidade sem pensamento”.11
A Mente Universal
Até agora analisamos os progressos do aspirante no desenvolvimento de sua vida interior, mas tais progressos se traduzem igualmente na ordem externa, e, por outra parte, a parte que separa o interno do externo é cada vez mais delgada, e cada vez nos parece mais uma convenção artificial estabelecida pela mente não madura, todavia, encerrada em si, que não vê senão a si mesma. O aspirante sentirá que esta separação perde lentamente sua dureza, e experimentará uma maneira de mudança na substância de seu ser, como se tornasse mais leve, mais transparente, mais poroso, me atreveria dizer. Esta diferença substancial se revelará em principio por sintomas desagradáveis, porque o homem comum se encontra geralmente protegido por uma forte couraça, entanto que o aspirante carecerá de semelhante proteção: receberá os pensamentos das pessoas, os desejos das pessoas em seu verdadeiro aspecto e em sua total nudez, como o que são em realidade: verdadeiros atentados. E notemos que os "maus pensamentos", ou as "más vontades" não são os únicos que compartilham esta virulência; nada há mais agressivo que as boas vontades, os bons sentimentos, os altruísmos; de uma parte ou da outra, é o ego o que se nutre, pela doçura ou pela força. Não somos civilizados senão na superfície; por debaixo subsiste em nós o canibal. Será, pois, necessário que o aspirante se encontre na possessão desta Força de que falamos –com Ela poderá passar por toda parte-, e por outro lado, graças à sabedoria cósmica, a transparência não virá senão da proteção correspondente. Armado de "sua" Força e do silêncio mental, o aspirante verá gradualmente que por fora é permeável, que recebe -que recebe de toda parte-, que as distâncias são barreiras irreais -ninguém está longe, ninguém se foi, tudo está junto e tudo é ao mesmo tempo- e que a dez mil quilômetros se pode perceber claramente as preocupações de um amigo, a cólera de uma pessoa, o sofrimento de um irmão. Bastará, no silêncio, com que o aspirante se incline até um lugar ou até uma pessoa, para que tenha uma percepção mais ou menos exata da situação, mais ou menos exata de acordo com sua capacidade de silêncio, porque aqui também a mente embrulha tudo, porque a mente tem desejos, porque abriga temores, porque quer e nada lhe chega que não seja falsificado, em seguida por esse desejo, por esse temor, essa vontade (existem outros elementos de confusão, dos quais trataremos mais adiante). Parece, então, que com o silêncio mental produziu-se uma ampliação da consciência e que esta pode dirigir-se, a vontade, para qualquer ponto da realidade universal a fim de conhecer ali o que ela necessita conhecer.
Mas nesta transparência silenciosa faremos outro descobrimento, capital por tudo quanto implica. Não são advertiremos que os pensamentos das pessoas nos chegam do exterior, senão também que nossos próprios pensamentos também chegam a nós de fora. Quando sejamos o bastante transparentes poderemos sentir, no silêncio imóvel da mente, uns como
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* Nos referiremos mais adiante a esta "outra parte", ao estudar o Supraconsciente.
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pequenos redemoinhos que vêm a golpear nossa atmosfera, ou umas como leves vibrções que chamam nossa atenção, e se nos inclinamos um pouco para "ver do que se trata", quer dizer, se aceitamos que um desses redemoinhos entre em nós, nos encontraremos repentinamente pensando em algo: o que tomamos na periferia de nosso ser é um pensamento em estado puro, ou muito mais, uma vibração mental, antes de que, sem apercebermo-nos dele, tenha tempo de penetrar em nós e de voltar a sair a nossa superfície, revestida de uma forma pessoal que nos fará exclamar triunfalmente: "É meu pensamento". Um bom leitor do pensamento pode ler assim o que passa em uma pessoa de quem não conheça sequer o idioma, porque não são "pensamentos" os que captam, são vibrações às que dá nele a forma mental correspondente. Pelo contrário seria o surpreendente, porque se fossemos capazes de criar sozinhos alguma coisa, ainda quando não fosse senão um pequeno pensamento seríamos os criadores do mundo. "Onde está em vocês o eu que possa fabricar tudo isso?", perguntava a Mãe. O que ocorre é que o mecanismo é imperceptível para o homem comum, primeiro porque o homem comum vive em meio de um corre-corre constante, e logo porque o mecanismo de apropriação das vibrações é quase instantâneo, automático; por sua educação e por seu ambiente, o homem se acha habituado a selecionar na Mente universal certo tipo, muito reduzido, de vibrações, com o qual tem afinidade, e até o fim de sua vida captará a mesma longitude de onda e produzirão o mesmo modo vibratório, com palavras mais ou menos sonoras ou giros mais ou menos novos, voltando-se e revoltando-se na jaula; somente a extensão mais ou menos variável de nosso vocabulário pode dar-nos a ilusão de que progredimos. Certamente, mudamos de idéias, mas mudar de idéias não é progredir, não é elevar-se a um modo vibratório mais alto ou mais rápido, senão muito mais outra pirueta no seio do mesmo meio. Por isso falava Sri Aurobindo de mudança de consciência.
Uma vez que tenha visto que seus pensamentos lhe chegam de fora e que tenha repetido a experiência centenas de vezes, o aspirante possuirá a chave do verdadeiro domínio mental, porque se bem, é coisa difícil desprender-se de um pensamento que acreditamos nosso, quando já se acha bem instalado dentro de nós, fácil é rejeitar os mesmos pensamentos quando os vemos chegar de fora. E, uma vez que tenhamos nos apossado do silêncio, seremos indefectivelmente dono também do mundo mental, pois em lugar de acharmo-nos de modo eterno, sujeito à mesma longitude de onda pode recorrer toda a gama das ondas e escolher ou descartar o que nos agrada. Mas deixemos que Sri Aurobindo nos descreva a experiência tal como ele mesmo a teve pela primeira vez com outro yogue chamado Bhaskar Lelé, o qual passou três dias em sua companhia: "Todos os seres mentais desenvolvidos, ao menos os que ultrapassaram o meio termo, devem, em certos momentos de sua existência, de uma maneira ou de outra, e com certas finalidades, separar as duas partes de sua mente: a parte ativa, que é uma fábrica de pensamentos, e a parte reservada, mestra, Testemunha e Vontade igualmente, que observa, julga, descarta, elimina ou aceita os pensamentos, ordenando as correções e as mudanças necessárias; esta parte é o Senhor verdadeiro da casa mental e realmente capaz de independência. Mas o yogue vai mais longe ainda; não só é dono da mente, senão que ainda encontrando-se nela, dela sai, por dizê-lo assim, e se mantêm acima ou inteiramente atrás, livre. Para ele já não é válida a imagem da fábrica de pensamentos, porque vê que estes vêm do exterior, da Mente universal, formados e diferentes algumas vezes, outras vezes sem forma alguma, pois esta forma a tomam em algum lugar de nós mesmos. O trabalho principal de nossa mente consiste em responder e aceitar ou rejeitar essas ondas de pensamento (de igual maneira que as ondas vitais e as ondas de energia física sutil) e em dar uma forma mental pessoal a essa substância mental (ou aos movimentos vitais) procedentes da Natureza-Força circundante. Muito devo eu a Lelé por haver-me mostrado esse mecanismo: «Sente-se em meditação -me disse-, mas não pense, olhe só sua mente; você verá os pensamentos adentrando. Rejeite-os antes de que consigam entrar, e continue até que sua mente seja capaz do completo silêncio». Até então eu nunca havia ouvido dizer que os pensamentos pudessem chegar visivelmente de fora da mente, mas não coloquei em dúvida esta verdade ou esta possibilidade; simplesmente me sentei e fiz o que Lelé me dizia. Em um instante se minha mente tornou-se silenciosa, como o ai sem movimento no cume de uma alta montanha; logo vi vir de fora, de modo inteiramente concreto, um, dois pensamentos. Os rejeitei antes que pudessem entrar e impor-se a meu cérebro. Em três dias fiquei livre. A partir desse momento, o ser mental em mim se converteu em uma Inteligência livre, uma Mente universal. Já não era um ser limitado ao círculo estreito dos pensamentos pessoais, como um trabalhador em uma fábrica de pensamentos, senão um receptor de conhecimento que recebia centenas de reinos do ser, livre para escolher o que quisesse nesse vasto império de visão, nesse vasto império de pensamento" .12Procedente de uma pequena construção mental na que se acredita cômodo e muito iluminado, o aspirante olha atrás de si e se pergunta como pôde viver em semelhante prisão. Se sente surpreendido sobre tudo de ver que por inumeráveis anos viveu rodeado de impossibilidades e que os homens vivem circundados de barreiras: "Não se pode fazer isto, não se pode fazer aquilo, é contrário a esta ou aquela lei... é ilógico... isso não é natural... isso é impossível..." E descobre que tudo é possível e que a verdadeira dificuldadade consiste em acreditar que é difícil. Após haver vivido vinte, trinta anos em sua concha mental, como uma espécie de molusco pensante, começa a respirar com plenitude.
E percebe de que a eterna antinomia interior-exterior está resolvida, que ela também formaba parte de nossas calcificações mentais. Em realidade, o "fora" se encontra por toda parte, dentro. Estamos em toda parte! O erro consiste em acreditar que se pudéssemos reunir admiráveis condições de paz, de beleza, de campestre solidão, isso seria muito mais fácil; a verdade é que em toda parte haverá sempre algo para perturbar-nos, e mais vale decidir-nos romper nossas construções e abraçar todo esse "fora"; então, em toda parte que nos encontremos, estaremos em nossa própria casa. O mesmo ocorre com a antinomia ação-meditação; o aspirante fez em si mesmo o silêncio e sua ação é uma meditação (e ainda advertirá que a meditação pode ser uma ação); ora se encontre fazendo seu asseio pessoal, ora entregado a seus negócios, a Força passará, passará nele, já ele estará para sempre estabelecido em outra parte. E verá, por último, que sua ação se torna mais clarividente, mais eficaz, mais poderosa, sem perturbar por isso a paz: "A substância mental está tranquila, tão tranquila que nada pode conturbá-la. Se os pensamentos ou as atividades chegam... passam pela mente como um bando de pássaros que cruzam o céu no ar imóvel. Os pensamentos e as atividades passam nada alteram, não deixam nenhuma pegada. Ainda se um milhar de imagens ou dos mais violentos sucessos nos atravessa, a imobilidade tranquila permanecerá, como se a textura da mente estivesse feita de uma substância de paz, eterna e indestrutível. A mente que alcançou essa calma pode começar a atuar, pode ainda atuar intensa e poderosamente, mas sempre conservará essa imobilidade fundamental, não colocando nada em movimento por iniciativa própria, recebendo do Alto e dando a quanto recebe uma forma mental, sem agregar nada de sua própria colheita, tranquila, imparcial, mas com a alegria da Verdade e o poder, a luz de seu passo.13Será necessário talvez recordar que Sri Aurobindo dirigia nesse período um movimento revolucionário e preparava a guerra de guerrilhas na Índia?
Continua...